Nunca consegui entender”, disse Mr. Pond,
“como uma mudança que deveria ter ajudado um animal, se acontecesse
depressa, pode ajudá- lo se acontece devagar. E se acontece em seu
tataraneto, muito depois de passada a hora de o animal ter morrido sem
sequer deixar netos. Poderia ser uma vantagem se eu tivesse três pernas,
digamos, para me apoiar em duas enquanto chuto um burocrata com a
terceira. Poderia ser melhor se eu tivesse três pernas; mas não seria
melhor se eu tivesse apenas uma perna rudimentar (...) até que seja
longa o bastante para correr ou escalar, a perna seria apenas um peso
extra”.
O Mr. Pond do parágrafo acima é um detetive de ficção, criado pelo escritor britânico G.K. Chesterton (1874-1936). Chesterton tem um dos textos mais charmosos da língua inglesa, e seus contos de mistério são, geralmente, muito bons. O trecho destacado, no entanto, está aí não pelo valor literário, mas filosófico: representa a mais clara e elegante articulação do argumento criacionista da “complexidade irredutível”.
Popularizada no início dos anos 90 pelo bioquímico americano Michael Behe, a expressão “complexidade irredutível” refere-se a estruturas onde as partes são tão bem encaixadas e adaptadas umas às outras que, na ausência de uma só delas, o todo torna-se tão inútil quanto prejudicial: como a tal “perna rudimentar” que só serviria de peso morto.
Do ponto de vista biológico, diz Behe, a existência de fenômenos “irredutivelmente complexos”, se comprovada, refutaria a evolução por seleção natural. Formas irredutíveis marcariam a assinatura de um “designer inteligente”, que é a expressão-chave de mais uma tentativa hipócrita de contrabandear religião para dentro das aulas de ciências.
Há vários problemas com a ideia de “complexidade irredutível” aplicada à biologia. O primeiro e mais fundamental é ignorar a versatilidade da vida: a “perna rudimentar” de Mr. Pond não serve para correr ou escalar, mas pode funcionar como nadadeira, ou facilitar os primeiros passos de um animal aquático sobre a terra firme, como mostra o fóssil Tiktaalik, descrito na revista Nature em 2006. Está bem longe, portanto de ser “apenas um peso extra”.
A versão do argumento popularizada por Behe se vale de exemplos da bioquímica – ele gosta de citar cadeias de interações entre moléculas que produzem resultados específicos, como a coagulação do sangue, e dizer que cada elo da cadeia é, ao mesmo tempo, essencial para o todo e inútil em si. O jargão bioquímico tende a impressionar mais o público leigo que a “perna rudimentar” de Mr. Pond, mas o raciocínio é, em essência, o mesmo – e sofre das mesmas falhas.
Outro ponto, bem concreto, é que existem explicações plausíveis para a evolução gradual de várias características dos seres vivos, às vezes apontadas como “irredutivelmente complexas”. O livro “Creationism Trojan Horse”, de Barbara Forest e Paul Gross, por exemplo, indica listas e mais listas de artigos científicos que explicam e evolução das cadeias bioquímicas que Behe e seus colegas insistem em chamar de inexplicáveis. Ou, como escrevem os autores, “mostrando que o que Behe diz que não existe, existe”.
Agora, só como hipótese, vamos supor que haja, escondidos por aí, casos em que nenhuma explicação razoável para a evolução das partes variadas do todo complexo esteja disponível. E então? Poderíamos concluir que houve “design inteligente”? De jeito nenhum: “inexplicado” não implica “inexplicável”. Na verdadeira ciência, a ignorância é ponto de partida, não de chegada.
fonte:http://revistagalileu.globo.com/blogs/olhar-cetico/noticia/2014/09/complexidade-irredutivel-e-design-inteligente-provas-do-criacionismo-ou-tentativa-de-levar-religiao-para-aulas-de-ciencia.html
O Mr. Pond do parágrafo acima é um detetive de ficção, criado pelo escritor britânico G.K. Chesterton (1874-1936). Chesterton tem um dos textos mais charmosos da língua inglesa, e seus contos de mistério são, geralmente, muito bons. O trecho destacado, no entanto, está aí não pelo valor literário, mas filosófico: representa a mais clara e elegante articulação do argumento criacionista da “complexidade irredutível”.
Popularizada no início dos anos 90 pelo bioquímico americano Michael Behe, a expressão “complexidade irredutível” refere-se a estruturas onde as partes são tão bem encaixadas e adaptadas umas às outras que, na ausência de uma só delas, o todo torna-se tão inútil quanto prejudicial: como a tal “perna rudimentar” que só serviria de peso morto.
Do ponto de vista biológico, diz Behe, a existência de fenômenos “irredutivelmente complexos”, se comprovada, refutaria a evolução por seleção natural. Formas irredutíveis marcariam a assinatura de um “designer inteligente”, que é a expressão-chave de mais uma tentativa hipócrita de contrabandear religião para dentro das aulas de ciências.
Há vários problemas com a ideia de “complexidade irredutível” aplicada à biologia. O primeiro e mais fundamental é ignorar a versatilidade da vida: a “perna rudimentar” de Mr. Pond não serve para correr ou escalar, mas pode funcionar como nadadeira, ou facilitar os primeiros passos de um animal aquático sobre a terra firme, como mostra o fóssil Tiktaalik, descrito na revista Nature em 2006. Está bem longe, portanto de ser “apenas um peso extra”.
A versão do argumento popularizada por Behe se vale de exemplos da bioquímica – ele gosta de citar cadeias de interações entre moléculas que produzem resultados específicos, como a coagulação do sangue, e dizer que cada elo da cadeia é, ao mesmo tempo, essencial para o todo e inútil em si. O jargão bioquímico tende a impressionar mais o público leigo que a “perna rudimentar” de Mr. Pond, mas o raciocínio é, em essência, o mesmo – e sofre das mesmas falhas.
Outro ponto, bem concreto, é que existem explicações plausíveis para a evolução gradual de várias características dos seres vivos, às vezes apontadas como “irredutivelmente complexas”. O livro “Creationism Trojan Horse”, de Barbara Forest e Paul Gross, por exemplo, indica listas e mais listas de artigos científicos que explicam e evolução das cadeias bioquímicas que Behe e seus colegas insistem em chamar de inexplicáveis. Ou, como escrevem os autores, “mostrando que o que Behe diz que não existe, existe”.
Agora, só como hipótese, vamos supor que haja, escondidos por aí, casos em que nenhuma explicação razoável para a evolução das partes variadas do todo complexo esteja disponível. E então? Poderíamos concluir que houve “design inteligente”? De jeito nenhum: “inexplicado” não implica “inexplicável”. Na verdadeira ciência, a ignorância é ponto de partida, não de chegada.
fonte:http://revistagalileu.globo.com/blogs/olhar-cetico/noticia/2014/09/complexidade-irredutivel-e-design-inteligente-provas-do-criacionismo-ou-tentativa-de-levar-religiao-para-aulas-de-ciencia.html
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