Novos dados revelam que o degelo na Antártida é acelerado e potencialmente catastrófico, enquanto começa outro ciclo de negociações sobre redução das emissões de carbono.
Vamos começar na Antártida, o continente com a menor densidade demográfica e praticamente intocado pelos humanos. No seu livro sobre a região, Gabrielle Walker descreve muito bem as atividades recentes na vasta placa de gelo, desde as constantes descobertas de novas formas de vida marinha até a procura frenética de meteoritos, que são relativamente fáceis de encontrar na brancura do gelo. Se é um daqueles curiosos sobre como é sentir um inverno de 70 graus negativos, a história dar-lhe-á uma ideia. Gabrielle cita Sarah Krall, que trabalhou no centro de controlo aéreo do continente, coordenando voos e servindo como “a voz da Antártida”. Desde o seu primeiro encontro com a paisagem, Krall diz que ficou apaixonada:
"Não conseguia conter o meu entusiasmo… Era tão majestoso, tão belo. Achei que não teria qualquer encanto, mas não foi essa a expressão que surgiu na minha mente. A Antártida era simplesmente esplendorosa".
Ao descrever a sua caminhada ao redor da borda do Monte Érebo, o vulcão mais ativo do extremo do sul do planeta, Krall acrescentou: “É visceral. Esta terra faz com que me sinta pequena. Não diminuída, e sim pequena. Eu gosto dessa sensação”.
No entanto, por outro lado, a Antártida é onde percebemos o quanto somos grandes - não como indivíduos, mas como espécie. Há tempos, os cientistas perceberam que estamos a encher a atmosfera com dióxido de carbono ao queimarmos carvão, gás e petróleo. Um instrumento nas encostas do vulcão Mauna Loa, no Havai, foi criado para medir a abundância desse gás, e descobriu uma acumulação maior de CO² a cada ano. Porém, essa medição não diz muito sobre o passado. Para entender o perigo que enfrentamos, é preciso saber como o planeta respondeu ao carbono na atmosfera no passado distante. Se pegar num núcleo central de uma placa de gelo, as minúsculas bolhas de ar presas em cada camada podem dar uma boa ideia das quantidades sucessivas de CO². E não há como negar que os núcleos de gelo mais longos podem ser recolhidos na Antártida.
Walker faz um relato interessante das dificuldades em perfurar o gelo glacial, recuperar núcleos intactos e mantê-los congelados para estudo. Quando a máquina congela durante o processo, a equipa de perfuração europeia solta “bombas de conhaque” pelo buraco para descongelar o mecanismo. A recompensa pelo esforço despendido é um cilindro perfeito e transparente com cerca de três metros, com grandes laterais de cristal e a visibilidade de uma janela. Algo nunca visto por olhos humanos. Era a parte mais antiga do núcleo de gelo contínuo mais antigo da Terra. Coloquei o meu rosto perto dele, cuidadosamente para não lhe tocar, sustendo a minha respiração.
Quando a equipa finalmente recolheu as suas brocas, tinha obtido o registo climático do mundo de aproximadamente 800.000 anos, através de muitas eras do gelo e períodos interglaciares. E o que descobriram era simples e invariável:
Mesmo quando o nosso clima estava noutro período - alguma forma diferente de equilibrar as várias influências subtis que compõem o vento, o tempo e o calor que experimentamos - a temperatura e os gases do efeito estufa sempre caminhavam de mãos dadas. Uma temperatura mais alta sempre vinha com um nível mais alto de CO². E também o contrário: uma temperatura mais baixa significava um nível mais baixo de CO².
Além disso, em toda a história impressa nesse cilindro, nunca houve um nível tão alto de CO² na atmosfera como hoje. De acordo com Walker, “em todo o registo [do núcleo de gelo], o valor mais alto de CO² era cerca de 290 partes por milhão de partes de ar. Hoje estamos com 400 e continua a aumentar.” Isso quer dizer que a Antártida, por ser imaculada, proporciona o melhor vislumbre possível do momento geológico bizarro que vivemos hoje.
Mas, é claro, a Antártida não é mais imaculada. Os efeitos humanos sobre a atmosfera e o clima podem de facto ser lidos com mais facilidade no Polo Sul do que em qualquer outro lugar da Terra. E os resultados são verdadeiramente horripilantes. Para simplificar, as imensas placas de gelo estão a começar a movimentar-se a uma velocidade incrível. Na estreita Península da Antártida, que aponta para a América do Sul, e onde a maioria dos turistas visitam a Antártida, o degelo está a ocorrer tão ou mais rápido do que em qualquer outro lugar do planeta. Foi nesse local que um grande pedaço da plataforma de gelo Larsen B se desprendeu em 2002.
Porém, a península contém quantidades relativamente pequenas de gelo; a maior parte da água doce do mundo está presa nas placas de gelo gigantes da Antártida Oriental e Ocidental. Os cientistas, conservadores por natureza, chegaram à conclusão de que esses depósitos gigantes estiveram relativamente estáveis, pelo menos durante os últimos mil anos: Não é fácil derreter um quilómetro ou dois de gelo, especialmente quando a temperatura do ar raramente, ou nunca, sobe acima do ponto de congelamento. No entanto, como Walker deixa claro no final de seu relato, os investigadores estão cada vez mais preocupados com a estabilidade da Antártida Ocidental especificamente.
Glaciares enormes estão a desprender-se da placa de gelo da Antártida Ocidental para o Mar de Amundsen no Pacífico Sul. Talvez seja a parte mais remota do continente mais remoto e, para piorar as coisas, a parte mais interessante desse continente está debaixo de água. Por isso, os cientistas estão a enviar robôs subaquáticos autónomos, os submarinos autónomos, para estudar a geologia, e estão a usar satélites para estudar as mudanças na altura do gelo. O trabalho não estava concluído quando Walker convocou a imprensa para o lançamento do seu livro, mas o seu relato fornece toda a base de que precisa para entender o que pode ter sido o anúncio mais triste já feito na era do aquecimento global.
Em meados de maio deste ano, dois documentos foram publicados na Science e na Geophysical Research Letters, deixando claro que os grandes glaciares voltados para o Mar de Amundsen não estavam mais efetivamente “sustentados”. Descobriu-se que a geologia da região tem forma de tigela: por baixo dos glaciares, o terreno inclina para dentro, ou seja, a água pode e está a invadir a área abaixo deles. A água está literalmente a comer a partir de baixo e a libertar os glaciares dos pontos onde estavam presos ao solo. Essa água é mais quente, já que os nossos oceanos estão a aquecer continuamente. De acordo com os cientistas, esse colapso em câmara lenta, que ocorrerá durante várias décadas, é “irreversível” agora; já “passou do ponto sem retorno”.
Isso significa que três metros de elevação do nível do mar estão a ser acrescentados às previsões anteriores. Não sabemos quando isso ocorrerá e com que rapidez, apenas sabemos que isso ocorrerá. E não será só isso. Poucos dias após o anúncio sobre a Antártida, outros cientistas descobriram que a maioria das placas de gelo da Gronelândia apresentam uma geologia subjacente parecida, com a possibilidade de derretimento pela água aquecida. Outro estudo publicado naquela semana mostrou que a fuligem de enormes incêndios florestais, mais frequentes como resultado do aquecimento global, está a ajudar a derreter a placa de gelo da Gronelândia, um ciclo incrivelmente vicioso.
De certa maneira, nada disso é realmente novidade. Um dos principais glaciólogos, Jason Box, do GEUS (Geological Survey of Denmark and Greenland – Pesquisa Geológica da Dinamarca e Groelândia), calculou, com base no registo paleoclimático, que os níveis atmosféricos atuais de gases do efeito estufa provavelmente são suficientes para produzir uma eventual elevação de 21 metros no nível do mar. Mas uma coisa é saber que a arma está engatilhada, e outra é ver a bala a ser disparada; as notícias sobre a Antártida representam um momento decisivo. Isso não significa que devemos desistir dos nossos esforços no sentido da redução da mudança climática: na verdade, de acordo com os cientistas, significa que devemos aumentá-los muito, pois ainda podemos afetar a velocidade dessas mudanças e, com isso, o nível de caos que elas produzem. Enfrentar o problema no decorrer de séculos será mais fácil do que em apenas algumas décadas.
Também podemos limitar as várias outras formas de danos além da elevação no nível do mar (desde a intensidade das secas até a praga de insetos portadores de doenças), se limitarmos muito as emissões de carbono agora. Porém, as notícias da Antártida sinalizam, de uma vez por todas, que não é possível “parar o aquecimento global”. Não há uma maneira de resfriar as águas aquecidas que estão a derreter os glaciares. A física não vai nos dar uma trégua. A partir de agora, todos os nossos esforços precisam ser dedicados a impedir um cenário pior.
O drama anunciado em maio sobre as descobertas na Antártida foi o clímax de um ano com um crescente rufar de tambores do mundo científico. Durante esse período, os investigadores tentaram, com insistência cada vez maior, transmitir a mensagem ao público e aos políticos. Em março, a Sociedade Norte-americana para o Progresso da Ciência emitiu um manifesto bem direto com o título “What We Know” (O que sabemos), que começa assim:
A grande quantidade de provas em documentos sobre a mudança climática causada por seres humanos significa custos consideráveis e riscos futuros extraordinários para a sociedade e os sistemas naturais.
A declaração refere ainda que a mudança climática “põe em risco o bem-estar das pessoas de todos os países”.
Algumas semanas depois disso, a Casa Branca publicou a sua Avaliação Climática Nacional (National Climate Assessment), “Impactos da mudança climática nos Estados Unidos”, num site (Globalchange.gov), no qual é possível ver como cada estado ou região do país está a ser afetado pelo aumento da temperatura. A inovação da avaliação é retratar o dano resultante da mudança climática não como uma ameaça remota, mas como uma realidade atual:
Antes considerada um problema para um futuro distante, hoje a mudança climática faz parte do presente… Os americanos estão a perceber as mudanças ao redor.
E é claro que a mudança do clima é a responsável: por exemplo, atualmente, metade dos Estados Unidos está em estado de seca, e a seca da Califórnia é a pior desde, pelo menos, o séc. XVI, com incêndios por todos o lado como prova.
A Avaliação Climática Nacional importa mais pela sua mensagem implícita do que pelo seu conteúdo: ela sugere que o governo de Obama finalmente levará a sério, pelo menos retoricamente, a mudança climática. Isso marca uma mudança. Nas primeiras semanas do primeiro mandato de Barack Obama, funcionários do governo convocaram os líderes ambientalistas para uma reunião na qual disseram que não discutiriam o aquecimento global: em grupos focais, era mais popular falar sobre “trabalhos sustentáveis”. E eles mantiveram a sua promessa infame: nas palestras fracassadas da Conferência sobre Mudança Climática de Copenhaga em 2009 (o maior fiasco da política externa dos anos de Obama) e na tentativa fracassada no Congresso norte-americano de limitar a emissão de carbono no ano seguinte, a Casa Branca mal sussurrou a palavra “clima”.
Na campanha para a reeleição, em 2012, eles literalmente conseguiram evitar mencionar esse assunto (copiando a postura de Mitt Romney), até que o Furacão Sandy tornou isso impossível, nos últimos dias antes do pleito. Enquanto realizava a campanha, durante o ano mais quente da história norte-americana, com uma seca a devastar o centro do país, a equipa de Obama mantinha um silêncio sepulcral. E quando o presidente falava sobre energia, fazia de tudo para deixar claro que apoiava o carbono, em qualquer forma possível. Por exemplo, em cima dos tubos de um oleoduto em Cushing, Oklahoma, afirmou:
“Sob o meu governo, os Estados Unidos estão a produzir mais petróleo hoje do que em qualquer outro momento nos últimos oito anos. Isso é importante saber. Nos últimos três anos, orientei a abertura de milhões de hectares para exploração de gás e petróleo em 23 estados diferentes. Estamos a abrir mais de 75% das nossas possíveis reservas de petróleo no oceano. Quadruplicamos o número de equipamentos de perfuração, estabelecendo um recorde. Construímos uma quantidade suficiente de tubulação nova para gás e petróleo capaz de dar a volta na Terra e um pouco mais”.
Realmente, quando Obama deixar o seu cargo, os Estados Unidos terão ultrapassado a Arábia Saudita e a Rússia como os maiores produtores de petróleo e gás do planeta. O país estará a usar menos carvão nas suas usinas, mas estamos a exportar mais. Estas ações resultaram em lucros tremendos para as empresas de petróleo e gás, mas não estão de acordo com a nova realidade física. Mesmo quando houve um enorme clamor do público, por exemplo, a onda de comentários públicos contrários ao oleoduto Keystone, o presidente hesitou. Realmente, os funcionários seniores sabem quão obscuro tem sido esse recorde. O jornalista Mark Hertsgaard, escrevendo para o Harper’s, cita uma série de confidentes de Obama admitindo que as suas ações não foram suficientes para atingir as metas internacionais, muito menos para deixar um legado climático sólido.
Ainda assim, parece que algumas mudanças estão a ocorrer. No início de junho, o presidente propôs novos regulamentos para centrais a carvão, com o objetivo de reduzir as suas emissões em até um terço até 2030. Esses regulamentos foram fortes o suficiente para disparar o alarme republicano de que o presidente estava a iniciar uma “guerra contra o carvão”.
O problema é que fazer mais do que George W. Bush com relação à mudança climática não é apenas pouco, também é irrelevante. Neste caso, a pergunta útil é: o que a ciência exige? Pelo facto de aprendermos durante o mandato de Obama que o Ártico está a derreter rapidamente e que o oceano está a acidificar a uma velocidade incrível, e com base nos relatórios mais recentes sobre o Polo Sul citados por mim, precisamos de muito mais. Defender as mudanças com relação ao carvão anunciadas recentemente pela Agência de Proteção Ambiental é, provavelmente, o máximo que Obama pode fazer com o Congresso atual, mas será necessário tirar proveito dessas ações com uma diplomacia inspirada a fim de garantir que a “próxima Copenhaga” — uma sessão global de negociações, marcada para Paris em dezembro de 2015, não seja outro fiasco.
Para colocar pressão sobre todos os negociadores, o Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, convidou líderes mundiais para uma reunião sobre o clima que será realizada em Nova York, em setembro. Essa reunião provavelmente repetirá os discursos enfadonhos sobre o destino das gerações futuras. Porém, tendo em vista o histórico de vinte e cinco anos de futilidades diplomáticas, muitos de nós que tentaram exigir alguma ação aproveitarão para promover, no cenário de Nova York e com a inundação do furacão Sandy ainda fresca na memória, o que pode vir a ser o maior protesto de rua da história do movimento climático.
O objetivo é tornar mais claro o sentido de urgência para medidas contra a mudança climática e influir nas negociações. Já há pelo menos alguns sinais do aumento da consciência sobre esse problema mundial. Cada novo desastre parece convencer cada vez mais a opinião pública sobre a necessidade de ação, assim como a perspetiva preocupante de um El Niño em larga escala começar na metade do inverno no hemisfério sul, trazendo consigo os seus prováveis desastres climáticos.
A comunidade financeira começou a questionar o valor em longo prazo dos stocks de combustível fóssil. Instituições com um grande volume de dotações, como a Universidade de Stanford, começaram o processo de venda de alguns das suas ações em empresas de carvão. De acordo com os analistas, caso o mundo tome alguma atitude relacionada à mudança climática, muitas das reservas nas quais essas empresas baseiam o seu valor teriam que ser deixadas debaixo da terra. “Este é um dos debates mais acelerados que já vi nos meus trinta anos no mercado de ações”, disse Kevin Bourne, um diretor administrativo do Financial Times Stock Exchange, ao Financial Times durante o outono, no dia em que a Blackrock, a maior gestora de ativos do mundo, lançou um fundo de índice livre de combustíveis fósseis. No entanto, sabemos que será necessário um movimento muito mais forte e barulhento, e principalmente global, para pressionar os personagens principais a executar ações proporcionais ao tamanho do perigo.
Comecei esta resenha com a metáfora de um jogo de xadrez, mas o futebol também serve, pelo poder das forças agora desencadeadas. Como civilização, estamos a 44 minutos do segundo tempo e a perder um a zero. Trocar a bola de pé em pé, mesmo que permaneçamos no campo de ataque, simplesmente não vai ser suficiente para ganhar o jogo. Temos que fazer lançamentos longos e improváveis.
A boa notícia é que às vezes essas jogadas arriscadas funcionam. Na tarde em que a notícia assustadora sobre a Antártida foi anunciada, uma estatística encheu-nos de esperança, vinda da Alemanha. Lá, o único país que levou a sério a mudança climática e trabalhou para mudar a sua infraestrutura de energia, um novo recorde de energia renovável foi estabelecido. Naquela mesma tarde, a Alemanha tinha gerado 74% das suas necessidades elétricas de fontes renováveis.
Há muito ainda a aprender sobre como armazenar a energia do vento e do sol para dias nublados e sem vento. Precisamos de redes melhores para fazer com que esse sistema de energia funcione perfeitamente, e elas não serão baratas. Porém, se um país localizado numa latitude muito mais ao norte pode fazer uma economia moderna funcionar com energia proveniente de cima, não de combustíveis fósseis provenientes de baixo, todos nós podemos sentir-nos encorajados. Isso pode ser feito. O recurso que conseguiu essa façanha na Alemanha foi a vontade política, que é infinitamente renovável. Se pudermos colocá-la em movimento.
fonte:http://www.esquerda.net/artigo/crise-climatica-por-que-agir-agora/33699
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